Não Grite!!!

Não Grite!!!

sexta-feira, 27 de março de 2015

CUIDADO COM O QUE DESEJA





Haiti, Agosto de 1791, Cerimônia Bwa Kayiman

Uma multidão de escravos se reuniu na clareira de “Bon Dieux” para presenciar a virada. Todos fugidos, cansados dos maus tratos, da carnificina, isso tinha que parar. A esperança viera na forma de um homem, “O Escolhido”, Ezili Dantor. Sua fama percorreu rapidamente as senzalas da região e o furor de liberdade tomava conta da população escrava.




Semelhantemente a uma aldeia, os escravos se amontoavam ao redor da fogueira esperando o momento. Havia muitas pessoas usando máscaras feitas com a face de animais dilacerados. Porcos, bois, cervos... 

Uma cantiga antiga era cantada enquanto a luz da fogueira iluminava a mesa de pedra perto da barraca feita de taipa, onde brilhava uma cortina vermelha, banhada a sangue de cabra. Cortina essa que agia como porta de entrada para a cabana.

“Oh lespri sen nan libète
Gratis pèp ou a soti nan sa ki mal
Boule lènmi an nan dife ki p'ap janm fini
Vire zo ou a nan sann dife
Posede peyi a nan pulsates san...”

A canção era cantada de forma repetida e lenta, como se os escravos sentissem cada letra na língua. Um clamor de libertação tomava conta de todos.



Um raio riscou o céu iluminando a figura de um homem de manto escuro, olhos vermelhos, corpo negro, que segurava um boneco em uma das mãos e na outra uma faca antiga. Um boneco de pano, vestido como se fosse um rei, parecia com o rei. Um dos escravos se aproximou dele e entregou um pedaço da manta do governador. O clamor aumentou no meio da multidão, que se ajoelhou perante o homem, nu.

Dois homens usando máscaras de ferro pontudas, com chifres enrolados, se aproximaram arrastando um imenso porco negro. O animal se debatia tentando se soltar, mas não conseguia. Os homens o jogaram e amarram na mesa de pedra. O misterioso ser de capa negra se aproximou dele, o olhou nos olhos e em seguida para a multidão.

- San pou san! Bradou Ezili, levantando a faca e abrindo a garganta do animal com um forte golpe.

O sangue do animal escorreu por entre os canais da mesa de pedra, caindo num vasilhame em forma de cuia, enquanto ele se debatia e tremia até a morte. Após alguns minutos, Ezili se aproximou, apanhou o vasilhame, elevou aos céus e derramou o sangue do animal sobre sua cabeça, proferindo palavras de maldição haitiana. O fogo da fogueira aumentou grandemente. Os escravos começaram a se assustar. O homem macabro abriu seus olhos vermelho-fogo, pegou o livro de capa feita com tecido de cabra preta e proferiu pausadamente:

 - Esta é uma noite da libertação, meus irmãos. Os Espíritos dos nossos antepassados estão furiosos com os nossos opressores. Eles nos ajudarão a aniquilar essa raça imunda e tomar o que é nosso por direito! Madichon pou franse! Lanmò nan franse! – bradou, levantando um grande clamor na multidão.

Ezili proferiu as palavras do livro, segurou sua faca e abriu a garganta do boneco. Um pouco longe dali, em seu leito, o governador da província teve sua garganta cortada por algo invisível. A esposa acordou pelo respingar do sangue em sua face. Os lençóis foram tingidos do vermelho sangue real...

- Que a carnificina comece! – Disse o homem de olhos vermelhos sob o clarão de outro raio.

Os escravos tomaram posse de suas lanças, arcos, flechas envenenadas e atacaram na calada da noite a colônia francesa. Atearam fogo nas casas enquanto todos dormiam, matando centenas de famílias indefesas. Outras eram arrastadas para fora e esquartejadas. As ruas tornaram-se rios de sangue que se juntavam à água da chuva, observadas pelo homem de manto negro em cima da colina cujo sorriso maléfico lhe apoderava a face. 

Ele desceu às ruas, pisou no sangue francês e chegou à casa principal, para tomar o poder. A esposa do governador ainda estava desolada, jogada ao chão, como um cão. Ezili não pensou duas vezes, arrancou a cabeça da mulher e do homem já morto. Ele olhou a cabeça decapitada do governador caolho e riu. Ouviu um barulho vindo do guarda roupas e percebeu pela mínima fresta um olhar assustado, lacrimejantemente azul. Era Damian, o filho do governador.

Dantor riu consigo:

- Quanta ironia! Está vendo como o destino pode ser sarcástico, governador? – disse olhando para a cabeça imóvel do decapitado. Fingiu não ver a criança ali enquanto saia ao sobrado e levantava as cabeças como se fossem um troféu. Os negros, vencedores, bradavam pela conquista.

Um tiro seco estalou no ar. As cabeças caíram das mãos do homem de capa negra. Ele parou por um momento, olhou para o peito e viu o enorme buraco causado por uma arma francesa. Olhou para trás para ver seu assassino. Era ele, Damian Duvalier, o filho do casal decapitado.

            - Modi! – Bradou, enquanto  seu corpo caía do sobrado.

Os escravos ficaram pasmos ao ver o corpo retorcido do seu líder na rua,  crânio exposto e sangue a jorrar pela calçada. Entraram na casa, mas não encontram nada além de cadáveres. O restante dos sobreviventes franceses fugiu em seus navios e o Haiti finalmente tornou-se livre. Por algum tempo...


Portland, Agosto de 2001


- Eu o conheci no metrô. Era um dia chuvoso, eu havia esquecido meu guarda-chuva e estava ensopada. Sentei-me num banco vazio, tremendo de frio olhando de um lado a outro, meio envergonhada, e percebi que tinha alguém olhando pra mim... Ele... me olhava de um jeito tão... intenso.

- Intenso? – questionou o ancião, coçando sua barba branca que contrastava com sua pele negra.




- Sim. Digo... Ele me olhava como se quisesse me possuir ali mesmo, me fez agitar a respiração. Aqueles olhos azuis me devoravam, o frio se foi totalmente do meu corpo.

Ele se aproximou me oferecendo seu casaco e conversou comigo. Eu fiquei ludibriada pela voz dele. Descemos no mesmo ponto, ele me levou em casa, me convidou pra sair... tudo perfeito. Tivemos uma noite de loucuras, perdi minha virgindade com ele e... Foi aí que tudo mudou.

Ele ficou distante, frio. Não atendia minhas ligações, até que ele simplesmente sumiu. Eu fiquei louca. Não posso perdê-lo, sr, não posso!!!

- Então o que você quer que eu faça, lady?

- Eu quero um feitiço! Um feitiço que o prenda eternamente a mim. Um feitiço que una nossos corpos a ponto de um não viver sem o outro! Eu não posso perdê-lo, eu não suporto a idéia de vê-lo com outra! Estou disposta a tudo, nem que pra isso eu tenha que oferecer minha alma ao Diabo!

- Hummm... – retrucou o velho, olhando para a moça com um brilho malévolo no olhar – Cuidado com o que deseja, moça. Os Espíritos gostam de sacrifícios, mas a magia envolvida não pode ser  desfeita.

- Não me importa! Eu o quero pra mim! Pra sempre!!!

- Tudo bem... se é o seu desejo... – aceitou o velho, mostrando seu sorriso amarelo.

Helena entregou uma foto de Patrick, a pedido do ancião. Ele começou a fazer um boneco de palha, tecido e barro, um trabalho que fez com maestria, em alguns minutos. O coração da desolada moça batia mais forte a cada minuto. Estava desesperada, magoada, iludida. Em sua mente vinham turbilhões de sentimentos avessos. Dor, nostalgia, remorso...

- Está pronto – disse o ancião. Dê-me sua mão.

A magoada menina estendeu sua mão e sentiu a grossa e fria mão do ancião envolver seu pulso.

- San pou san! Murmurou repetidamente o velho, espetando o dedo da moça com uma agulha.

Helena tentou se soltar, mas o velho segurou com mais força seu pulso e desenhou com o sangue que saia do seu dedo uma estrela-de-salomão no peito do boneco recém-criado. O ar da sala se encheu com um pesado cheiro de carne podre e o ancião o aspirava como se fosse uma droga. Batidos de tambores surgiram do nada, um vento sobrenatural apagou as velas ao redor, deixando o lugar com a pouca luz de dois lampiões. O ancião continuou com suas palavras profanas:

- “Grande Ezili, rogo à sua grandeza
Que esta dama tenha sua ânsia saciada
Que o que ela deseja se torne real
E que nada além do sangue quebre esse elo que se faz agora!!!
San pou san! San pou san! San pou san!

Helena fechou os olhos tamanho o pavor que sentiu, os barulhos tornaram-se ensurdecedores e repente cessaram. 

A garota foi abrindo os olhos, lentamente e percebeu que... Tudo estava parado. Os objetos estavam flutuando no ar, o ancião parado segurando o seu... Espera!!! Ela estava lá!!! O ancião estava segurando sua mão, mas... 

“Eu morri???  Oh my God, eu estou morta??!!”

Um tremor abalou o local. Compassado, como se algum gigante se aproximasse. Helena olhou em volta e viu uma figura de capa preta, que balançava ao vento sobrenatural. Era aparentemente a figura de um homem, mas com aspecto retorcido, que se tivesse todos os ossos do corpo quebrados. Ela arquejou de frio, cruzou os braços esfregando as palmas das mãos nos ombros e caminhou em direção à porta.

O barulho dos seus sapatos no assoalho. As sombras que se formavam na parede que pareciam persegui-la...

Ela parou assustada, a alguns passos da tenebrosa figura, que levantou o rosto e revelou seus olhos vermelho-fogo. Aquela visão perturbou a amargurada moça que ficou catatônica. O rosto do Espírito Ezili estava seco, com se tivessem o dissecado, os dentes à mostra, não tinha mais nariz e seus olhos vermelhos se alocavam numa imensa caverna no lugar onde estavam seus olhos.

- Sua. Alma... – disse a tenebrosa figura, soltando um hálito quente no ar.




Helena não se movia, nem tinha forças pra pedir socorro...

O ser deu um passo em direção a ela, fazendo-a vislumbrar seus pés de bode e suas pernas cobertas de pêlos negros... Ele respirou fundo e o hálito revelou-se em forma de fumaça novamente, balançando os negros cabelos da moça.

- Sua. Alma... – repetiu a besta – Sua Alma... é... MINHA!

As mãos grotescas da fera agarraram o pescoço da moça de modo brusco, asfixiando-a.
Helena acordou ensopada de suor na sua cama, nua, ao som das batidas de alguém na porta... 
Era ele.


San Francisco, 20 de Setembro de 2008


Para: grace.washington@yahoo.com
De: helena.krusby@yahoo.com

Assunto: Más Notícias

Grace,

As coisas pioraram, pioraram muito...
Desde quando me mudei para San Francisco, 5 atrás, eu vive um inferno de pesadelos. Não consigo dormir direito pensando nele, Patrick. Eu sei que errei, que fui burra, muito burra!!! Aquele âmbito de desespero a 7 anos atrás me levou a tomar aquela estúpida decisão. Agora não consigo mais dormir sem que a figura daquele demônio me clame o sangue.
No início tudo foi perfeito: recuperei o Patrick, ele me amava intensamente, mas... dois anos depois aquele amor se transformou em doença. Patrick se tornou controlador, não me deixava trabalhar direito, se interferia a cada minuto na minha vida.
Ele me seguia para todos os lados, eu não dava mais um passo sem que eu olhasse para o lado e ele não estivesse lá. Estava sufocada! Tentei conversar com ele, mas tudo piorou. Foi aí que as ameaças começaram, ele começou a dizer que eu estava apaixonada por outro e que ele não ia deixar isso acontecer. Afastou-me de todos os meus amigos, me isolou. Ele chegou a bater em vários amigos pelo simples fato de terem me dado oi, e eu, ainda apaixonada, relevava tudo.
Todo o amor que eu tinha, foi se transformando em medo, magoa, até que no dia em que briguei com ele, disse que não dava mais, ele tentou me matar com uma navalha. Escapei por pouco! Patrick foi preso, mas prometeu que sairia logo e que me encontraria para ficarmos juntos pra sempre.
Nossa, Grace, ele parecia estar possuído por alguma coisa. Foi aí que percebi que eu tinha feito a maior idiotice da minha vida indo pedir o feitiço para aquele velho haitiano.
“Sangue por Sangue”. Essa frase me apavora desde então. Eu pedi um feitiço que nunca fosse desfeito e agora estou condenada! Procurei o velho novamente, mas não consegui encontrá-lo. Falaram-me que ele tinha se mudado para Portland, daí tomei a decisão de mudar para cá, mas até agora nada.
Ultimamente tenho sentido que algo ruim está para acontecer, eu não sei... Os pesadelos pioraram...
Quando puder, venha me visitar. Preciso muito de você, amiga.
Av.Green Vall, 1544, Midtown, San Francisco.
Grande abraço,

Do outro lado, lendo o e-mail recebido, Patrick sorriu diabolicamente e saiu em busca da sua amada, deixando no chão o corpo de Grace, sangrando da forte pancada na cabeça...


(***)

Naquela noite Helena teve outro pesadelo com o homem de capa preta. Desta vez ela estava no topo de uma montanha, olhando para uma vila rudimentar que queimava. Seu vestido branco de cetim balançava ao vento e as pétalas das flores do buquê que segurava eram carregadas pelo ar. Das brechas do chão nas laterais saía uma fumaça branca, com cheiro de incenso de flores.



As pétalas seguiam a direção da corrente de vento, formando uma espiral de pétalas vermelhas que contrastavam com o céu negro. Gotículas de uma água escura começaram a tingir o rosto claro da moça enquanto trovões estremeciam e raios clareavam o céu. 

Helena baixou o rosto e sentiu uma terrível aura lhe paralisar. Era ele. Apesar de todo pânico ela não conseguia se mexer, nem demonstrar nenhuma feição de pavor! Sentiu algo lhe queimar a nuca, era uma dor fina e desconfortante, que aumentou repentinamente, fazendo-a gritar. Acordou aflita, a cama ensopada com seu suor. Foi ao banheiro, pegou o sabonete, ensaboou o corpo e sentiu uma protuberância na parte de trás do pescoço. Foi até o espelho e viu que estava com uma marca estranha, uma espécie de estrela de seis pontas feitas com o cruzamento de duas setas côncavas. Estava bem avermelhada.


- Mas o que diabos é isso?! – sussurrou.






(***)

O telefone tocou, mas Helena não ouviu pois estava secando o cabelo. Deixaram uma mensagem de voz. Ao terminar, Helena olha a mensagem, onde há a possível localização do velho haitiano e em seguida ouve a mensagem deixada na caixa postal.

“Helena! Helena! – dizia a voz desesperada de Grace na mensagem de voz – Fuja! Fuja! O Patrick está ainda mais louco! Ele me atacou ontem assim que entrei em casa, me quebrou um vaso na cabeça. Quando acordei estava no hospital com meu esposo e ele me falou que meu computador estava aberto e que havia um e-mail seu, e que alguém havia lido. Amiga, ele foi atrás de você, e se ele saiu ainda ontem  já deve ter chegado a Portland. Pelo amor de Deus, se você estiver em casa, fuja agora, chame a polícia, tenho medo do que ele possa fazer com você. Liga-me assim que puder!”

Helena não acreditava no que estava ouvindo. Sua mente queria correr o mais rápido possível, mas seu corpo não se movia. 

Batidas fortes na porta.

Helena sai do seu torpor e se move lentamente para olhar pelo olho mágico. A porta é arrebentada violentamente fazendo Helena ser jogada por cima do sofá e quebrar a mesinha de vidro com o corpo. 

A sua respiração parou por alguns instantes e ela viu o teto o qual olhava girar feito um disco de vinil antigo. Olhou desnorteada para sua mão... Sangue! Helena imaginou que seria ali mesmo a sua morte. O terror ganhou forma no seu semblante ensangüentado ao ver Patrick parado à sua frente, com um revólver à mão.

Ele a levantou docemente, acariciou seu rosto vermelho e a olhou nos olhos assustados. Seu semblante era assustadoramente profundo, como se não fosse ele quem estivesse ali e sim algum adorador pagão. 

- Não tinha que ser assim, meu amor. Eu esperei todos esses anos para você ser minha e o que você fez? Fugiu... – Disse ele com uma voz doce, a qual alternou para berros de uma loucura surreal – VOCÊ. FUGIU. DE MIM, HELENA!!! FUGIU!!!! COMO VOCÊ PODE FAZER ISSO DEPOIS DE TUDO QUE FIZ POR VOCÊ, SUA VADIA!? – alternou novamente para um tom amável – Não, não, não, não, não, não, não... Desculpe-me, meu amor, eu... eu sinto muito, eu... eu nunca quis te machucar – começou a beijar o rosto ensangüentado da moça, como um louco de amor, pintando seus lábios com o sangue dela – Eu te amo, eu te amo... mas eu nunca... nunca vou te perdoar por ter me abandonado, NUNCA!! – Começou a apertar a cabeça de Helena contra seu peito com suas grandes mãos e chorou desesperadamente – Eu não queria fazer isso Helena, eu não queria... Mas você não me deixou escolha... Eu não posso perder você... eu... sinto que temos que ficar juntos eternamente, nem que pra isso eu tenha que por um fim nisso tudo, da pior maneira possível...

Helena todo esse tempo esteve sem forças, calada, não conseguiu gritar, nem se mexer. Ainda estava sob o torpor da pancada e de como tudo aconteceu tão rápido. Em todo o discurso de Patrick, veio a sua cabeça o dia, aquele dia, em que ela cometeu o maior erro de sua vida.

“- Então o que você quer que eu faça, lady?

- Eu quero um feitiço! Um feitiço que o prenda eternamente a mim. Um feitiço que una nossos corpos a ponto de um não viver sem o outro! Eu não posso perdê-lo, eu não suporto a idéia de vê-lo com outra! Estou disposta a tudo, nem que pra isso eu tenha que oferecer minha alma ao Diabo!”

 “Tola! Tola!!! O que eu fiz?...”

O telefone toca. Patrick deita Helena no sofá, ainda em estado inerte e se direciona até o aparelho. A ligação cai na caixa postal. É Grace.

“- Helena, se estiver aí, por favor atenda... Helena!”

- Olha se não é minha irmãzinha intrometida – disse aos risos, como se conversasse com Grace – Como sempre, você se mete onde não te cabe, não é, Grace?

“Amiga, por favor, tenha cuidado. Os médicos consideram Patrick extremamente perigoso. Chame a polícia se vir algo estranho. Tenho medo da obsessão que ele tem por você...”

Patrick foi até Helena e se agachou na sua frente. Ela retribuiu o olhar dessa vez pra ele com olhos de pena, às lágrimas.

- Me desculpe, Patrick.

- O quê?

- Tudo isso é culpa minha... eu fiz isso com você.

Patrick arregalou os olhos, assustado com a reação da moça.

- Eu fui uma idiota. Eu devia ter deixado você ir. Eu devia tê-lo deixado seguir seu caminho, porque... Algumas coisas não são pra ser e insistir em querer algo que não pode ser é pedir para padecer no paraíso, mais cedo ou mais tarde.

- Meu amor... – disse ele acariciando a perna de Helena com a arma – é tarde demais para isso. Você deveria ter pensado nisso antes de me machucar, antes de me deixar ser levado por eles, antes de me abandonar. Eu passei 5 anos da minha vida numa prisão de retardados, comendo uma merda de comida, bebendo uma merda de água, tomando medicamentos fortes, sem estar louco. Que porra de vida eu tive naquela época? QUE PORRA DE VIDA VOCÊ ME DEU, HELENA??? 

Um silêncio tomou conta do ar e Patrick continuou seu doloroso discurso.

- Eu não conseguia nem me olhar no espelho sem ver você. Você estava nos meus sonhos, no resto de água do copo, no reflexo da colher da minha comida, nas paredes, no teto, no ar, VOCÊ ESTAVA EM TODO LUGAR MENOS COMIGO!!! Você desgraçou a minha vida e eu comecei a te odiar do fundo da minha alma. Eu não sei como, mas algo dentro de mim não me deixa te esquecer. É como se meu amor por você fosse uma maldição. Eu não sou louco! Eu... não era louco, mas.. mas a verdade é que eu não sei mais quem eu sou.

Helena olha-o aflita.

- O que eu sei... – continua – O que eu sei é que tudo isso é culpa sua.

- Eu posso concertar isso, Patrick. Eu..

-Consertar? – ri um sorriso insano - Não, você não pode. EU posso consertar tudo agora.

- Patrick, por Deus, não faça nenhuma besteira. Eu Posso pelo menos tentar. Se você me deixar ir eu posso encontrar o...

- Deixar você ir? – Patrick começou a rir ironicamente – Depois de todos esses anos? Eu acabei de encontrar você e... Você me pede pra te deixar ir?

Patrick aproxima seu rosto do ouvido de Helena e sussurra diabolicamente.

- Você nunca mais vai se livrar de mim, querida. Nós vamos padecer juntos no inferno.

- Até pode ser – retribuiu o sussurro – mas eu pelo menos vou tentar corrigir meu erro.

Helena quebra bruscamente o vaso de vidro que estava no criado mudo ao lado do sofá na cabeça de Patrick, que vai ao chão e deixa a arma cair perto da porta. A moça pula por cima de Patrick para fugir, mas ele a derruba, segurando seu tornozelo. 

- NÃO, HELENA!!!

A moça desacorda-o com um chute no rosto já banhado de sangue e corre em direção ao seu carro.


(***)


O velocímetro marcava 88 Km/h.

Foi assim que Helena atravessou a ponte Golden Gate no seu surrado Silverado em direção à Estação Point Reyes e de lá pegou uma estrada tortuosa em direção às montanhas Sir Francis, onde estava localizado o velho haitiano, ou pelo menos era o que ela esperava.




Estava tensa, mas já tinha limpado seu rosto com uma camiseta velha que estava no carro e tomado alguns analgésicos. A dor em sua alma é que só aumentava. Ver aquele Patrick torturado e amargurado por conta do que ela fez a destruía mais do que tudo.

O relógio marcava meia-noite quando a voz do GPS a pediu para virar a direita e seguir em frente. Helena olhou pela janela e se maravilhou com a beleza do Lago Estero enquanto sobe a montanha rochosa que circunda o lago, por uma estrada pedregosa e empoeirada. O medo começa a tomar conta da moça, mas a vontade de reverter o que havia feito a motiva ainda mais.

Ao chegar ao alto da montanha, ela avistou um casebre de madeira iluminado por luz de velas. Ao se aproximar, percebeu que o local era semelhante a uma pequena fazenda, com um cercado de arame farpado enferrujado e algumas cabeças secas de gado penduradas nas estacas, como que para assustar viajantes.



Helena estacionou seu Silverado próximo a uma árvore estranhamente retorcida, que parecia uma mão indicando algum caminho para o leste. Respirou fundo e começou a caminhar em direção à cabana, cada vez mais nervosa, cada vez mais decidida a por um fim em tudo isso.

Estava frio, muito frio. O casaco de Helena não a confortava, nem sua calça de jeans grosso. Ela abriu o mini-portão de aço enferrujado, que rangeu em toda a sua extensão, fazendo ecoar um som estridente por toda a região cerrada, alvoroçando alguns bichos da noite, devido à quietude do lugar. O coração disparado, a alma tensa, foi assim que Helena bateu três vezes na porta, que abriu sozinha e lentamente, rangendo como se fosse uma alma em chamas. Com uma coragem sem igual Helena adentrou o recinto, ouvindo bater a porta às suas costas.

- Oi?! Te-tem alguém em casa?

Nada além de um silencio apavorante.

Helena começa a caminhar em direção a uma vaga luz que vem do fundo. Seus passos ecoam pelo assoalho de madeira, rangendo como se elas fossem quebrar. Ela sente que está sendo observada. Olha para um lado para o outro, mas quase nada dava pra ver. 

Um barulho veio do telhado. As batidas do coração de Helena triplicaram à medida que o som de passos se aproximavam dela através do teto. Ela encostou-se na parede e fechou os olhos até que o som infernal que chegou perto do seu ouvido cessou bruscamente. Ainda sem abrir os olhos, Helena inclinou o ouvido tentando escutar mais alguma coisa, quando uma voz veio a seu ouvido, fazendo-a gritar:

- Boa noite, senhorita!

Helena saltou para trás e arregalou os olhos após o susto, suando. Era o velho haitiano. De onde ele viera era um mistério. Segurava uma vela na mão que iluminava apenas o seu rosto enrugado e seus olhos grandes, até demais.

- O que a traz a esse lugar tão distante, senhora?

- E-eu... Eu vim tentar... Resolver um problema, Senhor.

- Me acompanhe.




Um relâmpago iluminou o local e fortes gotas de chuva começaram a despencar do céu. A pobre moça cada vez mais tensa acompanhou o velhote até uma sala, onde se situavam diversos objetos de rituais Vudu, uma mesa redonda de madeira velha composta por 4 cadeiras feitas de bambu, uma cesta em cima da mesa, onde constavam uma grande variedade pedras coloridas e o que pareciam ser revistas em cima. Havia um candelabro medieval suspenso no teto sobre a mesa e diversos quadros de uma estranha arte macabra nas paredes, paredes estas que estavam esfacelando seu antigo papel de parede.

Helena sentou-se à mesa a pedido do velho, que pediu também que a mesma virasse as palmas das mãos para cima. Ele as acariciou, passou seus grandes dedos nas linhas do destino, como se estivesse vendo todo o passado de moça.

- Sinto muito, moça, mas não posso ajudar – disse o velho, meio assustado até. – Eu... Não tenho permissão.

- Mas eu ainda nem falei o que eu quero. Eu preciso...

- Não moça! Você não entende. O que você fez não tem volta. Suas almas estão condenadas. Eu sinto muito...

- Não!!! Eu...  Eu sei que você pode! – Implorou a moça já com lágrimas nos olhos. – Eu cometi um erro, Sr. O pior erro da minha vida. Eu fiz a pessoa que eu amava ser amaldiçoada por um amor doente. Eu... Não pensei direito.

- Esse é o problema do mundo hoje, MiLeyde: as pessoas insistem em querer o que não podem obter, mas não querem pagar o preço. No universo nada vem de graça. Nem o amor sobrevive se você não retribuir. Eu avisei a você. Agora não tem como voltar atrás. Eu sinto muito.

- Por favor, Sr... – Helena ajoelhou-se – eu imploro a você... Reverta o feitiço. 

- Eu sinto muito. O Grande Ezilli está à espreita. Não posso traí-lo.

- Então me dê uma dica, é só o que eu peço. Por favor!!!

- Corpos unidos... – sussurrou o velho.

- O quê?

O ar se encheu de uma presença sobrenatural. A janela se abriu bruscamente apagando as velas do candelabro e derrubando os quadros das paredes. As gotas de chuva arrastadas pelo vento molhavam o chão do salão. Helena levantou e percebeu o terror nos olhos do velho monge, que começou a sussurrar palavras haitianas desconhecidas a Helena.

- “Sa favè l ', li gen pitye kanpe avèk mwen, san mesye.”

Ele repetia sempre a mesma frase, sussurrando como se fosse uma oração. Sua voz foi aumentando, aumentando até que ele se ajoelhou, levantou as mãos para o alto e começou a gritar a frase que implorava a misericórdia de Ezili Dantor, o deus caído dos haitianos.

- “SA FAVÈ L ', LI GEN PITYE KANPE AVÈK MWEN, SAN MESYE. SA FAVÈ L ', LI GEN PITYE KANPE AVÈK MWEN, SAN MESYE.”

- Sr?! Sr?!- Helena tenta alcançá-lo, desesperada – O que está acontecendo?

O velho monge grita ainda mais alto, como se tivessem perfurando-o como uma lança. Helena tapa os ouvidos e fecha os olhos, mas nada impede que sinta o pavor que assola o salão. O vento, a chuva, os raios e trovões... Helena queria sair correndo, mas parecia que estava colada ao chão, nervosa ao extremo.

A atividade sobrenatural cessou bruscamente, juntamente com os tenebrosos gritos do ancião. A chuva e os trovões moderaram.

Helena foi retirando as mãos da frente dos olhos, devagar, apavorada. Olhou para o velho que ainda estava em posição de adoração, só que o rosto apontado para cima, com os olhos ainda mais arregalados e sua boca extremamente aberta. Parecia petrificado.

A pobre moça aproximou-se dele, receosa, a passos lentos. Ela observou seus olhos estáticos, como se tivesse visto a pior aparição do mundo. Olhos esses que de repente a olharam friamente e avermelharam até tornarem-se cor de sangue. Os dentes afiaram-se como lâminas do mais fino aço, ao redor da sua face surgiram grossas veias e seus braços desceram bruscamente, fazendo ecoar no salão o som de ossos quebrando.

O velho posicionou seu pescoço na posição normal, estalando-o no processo. Helena, em estado de choque, viu seu pior pesadelo vindo à tona, quando o velho avançou ao seu pescoço, jogando-a sobre a mesa e subindo por cima dela. A criatura dominadora a olhava fixamente e lambeu sua face com uma língua estranhamente longa e negra.A moça tentou se soltar, mas era como se tivesse sobre si o peso de um elefante, embora não se sentisse nem um pouco esmagada ou sufocada.

- Então você está querendo se libertar de mim, Helena? – disse o ser que habitava o corpo do velho monge, com uma voz grave e ecoada.

Ela arregalou os olhos ao saber quem estava ali. Lágrimas escorreram, mas nenhuma palavra saiu da sua boca.

- Não seja tola, criança. – o deus caído começou a rir diabolicamente – Quando você pediu a minha ajuda você ofereceu algo que não pude recusar em troca: sua doce e transtornada alma. 

- Oh, meu Deus. Por favor! Por favor! Por favor, não me machuque.

- Eu não vou machucar o seu corpo, Helena. – disse o ser dando risadas contidas – Eu quero machucar a sua... almaa...- disse o demônio, o mais doce possível.

- Perdoe-me, por favor, perdoe-me! – soluçava Helena.

- Perdoar? Eu não perdôo. EU não esqueço. EU me vingo!!

O velho levantou sua cabeça para cima, lambeu os dentes afiados com a língua e mordeu violentamente o pescoço de Helena, que faz seu grito desesperado ecoar por toda a região do topo da montanha e estremeceu o seu corpo inteiro, corpo que começou a se debater desesperadamente sobre a mesa.


Haiti,  Agosto de 1761

Havia um garotinho debaixo da mesa.

Haviam sussurros indecifráveis vindos da sala.

Havia um sentimento de pesar na velha sala de taipa, naquela noite fria do dia-de-todos-os-santos.
O pobre garoto soluçava sem parar, tentando estancar os soluços colocando as mãos sobre a boca. Via-se o terror estampado em sua face. Via-se a dor nas lágrimas que escorriam por seus olhos. Olhos esses que acharam um pouco de consolo ao ver na parede o retrato pintado de Czestochowska com o menino.




Parecia que ela estava olhando para ele com uma compaixão singular. O garotinho saiu devagar de debaixo da mesa, como que hipnotizado, e estendeu sua mão para a imagem, que o atraía para si.
Ouviram-se sons de cavalos correndo e o trincar de espadas, seguidos por sucessivos gritos do lado de fora. Os sons de desespero tiraram o garoto do seu devaneio e ele retornou novamente para debaixo da mesa. Seus pais vieram até ele correndo, assustados com lágrimas nos olhos.

- Não tenha medo, filho. Vai ficar tudo bem, ta? Vai ficar tudo bem. – disse seu pai acariciando sua face enquanto sua mãe o abraçava e o beijava fortemente.

- Mama, Papa, o que está acontecendo?

Sua mãe o olhou com olhos tristes e lacrimejantes enquanto o colocava dentro de um velho porta-trecos de madeira.

- Eu sinto muito, querido...

A porta da sala foi arrombada por um forte pancada. Os pais do garotinho correram pra cima do homem fardado que entrara com diversos soldados. E quando pobre criança entreabriu a porta para ver o que acontecia, deparou-se com a cena do homem caolho decepando as cabeças dos seus pais. Ele tentou conter o grito. O homem caolho, ouviu um barulho vindo do porta-trecos e percebeu pela mínima fresta um olhar assustado, lacrimejantemente escuro, mas simplesmente deu as costas e sinalizou para seus homens atearem fogo na casa.

As chamas se espalharam rapidamente, sem tempo para que a criança procurasse uma saída. Em meio à fumaça, a única coisa que ele viu foi a imagem de Czestochowska ser circundada pelas chamas e mesmo assim não queimar. A pobre criança clamou por socorro, mas a fumaça o sufocou. Ao retornar a si, deparou-se sendo carregado nos ombros de um negro alto e ensangüentado, subindo as colinas e deixando para trás a visão horrível de seu vilarejo, que ardia em chamas.

O homem misterioso o pôs no chão e ainda meio atarentado, o menino pôs-se a chorar.

- Não se preocupe filho. Vai ficar tudo bem agora. Eu vi o que aqueles desgraçados fizeram com seus pais. Qual o seu nome?

- Ezili. Ezili Dantor, Sr.





(***)

Helena voltou a si, depois dessa perturbada visão.


Algum lugar das montanhas Sir Francis, San Francisco, 2008

- Hey!!! – gritou Patrick, chamando a atenção do velho possuído.

Um tiro seco ecoou pelas montanhas. A bala atravessou a testa do velho haitiano, fazendo-o cair de cima da mesa. O corpo do ancião ficou tendo espasmos no chão, enquanto um sangue negro escorria pela sua boca e seus olhos tornavam-se brancos.

Helena levantou-se da mesa e olhou para seu salvador.

-Patrick!

- Eu falei que você não iria se livrar de mim, darling.

- Patrick, por favor...

Ele se aproximou de Helena bruscamente, segurando-a pelo cabelo e arrastando para fora. A tempestade aumentou novamente e os raios iluminavam o escuro céu, revelando ainda mais pavor aos olhos da moça, quando perceberam as nuvens estavam estranhamente avermelhadas. Helena vislumbra novamente a árvore de tronco retorcido que aponta para o leste.

-Patrick, por favor. Deixe-me em paz!!!

- Eu falei pra você, amor. Eu nunca vou deixar você ir. Nunca!!!

A garota golpeia o rosto do dominador e foge para o leste da floresta, seguindo a indicação da arvore retorcida. Tiros soltos ecoam pela mata. Pedaços de tronco voam na cara de Helena, quando as balas os penetram. A pobre garota corre o mais rápido, desviando e saltando por cima de troncos caídos, tentando não escorregar em meio à lama que escorre pela encosta das árvores.

-HELENAAAAA!!!



Os gritos de Patrick perturbam os ouvidos da moça que, cansada, pára perto de uma árvore procurando algum lugar para se esconder. Seus olhos assustados percorrem leste e oeste em busca de um abrigo, mas os gritos de Patrick estão mais próximos, o que significa que ela tem pouco tempo. Enfim ela vê um tronco grande e oco, perto de um Carvalho de tronco retorcido e desesperadamente para ele, entrando, sem pensar duas vezes, na fissura apertada do tronco, torcendo para que passasse despercebida. 

Helena agora ouvia apenas o barulho das fortes gotas de chuva que caíam. A água escorria pelo chão, como se quisesse formar um rio. De repente dois pés pulam na frente do tronco, fazendo a moça segurar o grito. Os olhos dela lacrimejam imaginando o que pudesse acontecer se Patrick a pegasse, o que ela teria que suportar o resto da sua vida.

- HELENAAA!!! – Ele grita mais uma vez.

A garota fecha os olhos, visto que não consegue mexer um músculo naquele lugar apertado.

- Maldição, MALDIÇÃO!!! – grita Patrick, batendo fortemente no troco com seus punhos.

O velho tronco soltou um gemido, como se sentisse dor. Sua estrutura velha não agüenta muitas pancadas e racha. O desespero aumenta no corpo de Helena e isso se reflete no seu olhar desesperado, que se fecha esperando o pior. Se ele batesse mais uma vez, ela estaria perdida. Mas não, tudo se aquietou. 

Helena abre lentamente os olhos, ainda quase sem respirar. Tudo voltou ao estado inicial, apenas o perturbador som da chuva a incomodava. De repente seu corpo é bruscamente arrastado para fora do tronco, fazendo com que as farpas soltas rasgassem sua pele. A moça grita ao ver o rosto diabólico de Patrick.

- Sua vagabunda!!! – disse ele lhe dando um soco na cara – Porque você não aceita logo o seu destino, hein?!

- Patrick, por favor, me deixe em paz – grita a moça, desesperada, sangrando do nariz.

- Nunca, Helena, NUNCA vou te deixar!

Helena, em mais uma tentativa suicida, enche sua mão de lama e joga na cara do seu agressor, cegando-o momentaneamente. Ela tenta correr, mas escorrega e cai numa ribanceira que, por conta da escuridão, não vira. Seu corpo é violentamente jogado encosta abaixo fazendo com que toda a tentativa de frenagem seja van. Sua cabeça bate no tronco de uma árvore e a moça perde a consciência por algum tempo. 

Ao abrir os olhos lentamente, Helena sente seu corpo mais pesado, como se tivesse sido atropelada por um caminhão, o caminhão Patrick. Percebe que está à beira de um penhasco, a mais de 70 metros de altura de um rio, alimentado por duas belíssimas cachoeiras, as Gêmeas de Sir Francis. Por um instante, Helena esquece o pesadelo que está vivendo, mas a voz de Patrick a traz de volta do seu devaneio.

- Por que você simplesmente não aceita, Helena? Por que é tão difícil pra você se conformar? Não há como escapar de mim.

- Patrick – disse a moça, tentando, em vão, convencê-lo. – Você não vê o que está fazendo? Fazendo com você? Fazendo comigo? 

-Ahhh, baby, eu vejo sim... E, sabe, isso me dá muito prazer, ultimamente. Antes eu te seguia feito um cachorrinho, mas daí você me abandonou naquela prisão de loucos, sendo que minha única loucura foi te amar demais!

-Me desculpe, Patrick, eu só...

-CALA ESSA BOCA, SUA VADIA ESTÚPIDA! Eu já cansei de tanto discutir isso Helena, não tenho mais tempo! – disse ele segurando bruscamente pelos cabelos e arrastando-a para a floresta novamente.

Helena, de saco cheio de tudo, se solta bruscamente do agressor e consegue puxar a arma que estava em sua cintura. Ela se afasta e Patrick a olha friamente, sem medo, rindo ironicamente como se o que Helena tivesse feito fosse uma travessura de criança.

- Helena, Helena...- Disse ele se aproximando.

A moça atira no ar, fazendo o som da bala ecoar como um trovão pela floresta.

- Não se aproxime Patrick! – Disse a moça, recuando ao passo que ele avançava. – Eu... Eu não quero te machucar... Eu só quero que você me deixe em paz...

- Não Helena... Se tem uma coisa que você não quer é paz. Você fodeu com a minha vida, me deixou doente por você. 

- Não... – chorava ela.

- Sim, baby. Por um tempo eu pensava que eu... estava ficando louco, mas depois... Depois tudo ficou claro – disse ele dando mais dois passos.

Helena atira novamente pra cima.

- Não! Pare!  - se cala por um momento olhando firmemente para Patrick. - Me desculpe, mas tentei reverter o que fiz – sua voz saiu estranhamente perturbada.

- Tentou reverter? – Patrick se irrita - ESSE É O PROBLEMA, HELENA. VOCÊ- SEMPRE-TENTA-CONSERTAR-TUDO!!! Você faz suas merdas e depois se arrepende. Eu já tava cansado de tentar ser bom pra você, de aturar seus erros e depois te desculpar. Por isso terminei com você. Mas é claro que a sua obsessão por mim tinha que terminar nisso, não é? Eu.. Eu sinto um amor tão doente por você que se você me matasse estaria me fazendo um favor. Eu não consigo mais viver assim, Helena, não consigo! Então... vai, atira! – dizia ele com um brilho diferente no olhar.
Helena lembra de tudo o que fez e, afinal, Patrick estava certo. Ela só faz burrada.

- Patrick, por favor...

- Vamos,  Helena, atire! Não seja covarde! 

-Patrick, não, não me faça fazer isso, por favor!!! – disse a garota, chorando desesperada, enquanto impunha a arma contra Patrick.

- Você  não tem noção do que eu planejo fazer com você. Se você soubesse você não hesitaria em apertar o gatilho. Agora você... A única maneira de você se livrar de mim é me matando. Então vamos, atira, Helena, ATIRA! – disse ele avançando bruscamente em direção a ela.

-PATRICK, NÃO!

Outro tiro seco ecoa pela montanha. Um último raio riscou o céu e um enorme trovão estremece o lugar, tal qual o grito de algum deus. A tempestade perde força de repente, o vento diminui e o corpo sem vida de Helena cai no chão enlameado, fazendo um barulho abafado, oco, quase silencioso. Seu sangue escorre pelas fissuras causadas pelo tiro que deu na própria cabeça e seus olhos abertos seguram a água da chuva que cai, até que pequenos rios se formem e escorrem até o chão. O sangue escorria pelo pescoço da moça, misturando-se às finas correntezas da água da chuva.

Patrick, sem acreditar no que tinha ocorrido, fica imóvel, de olhos assustadoramente congelados. Só o que sente é o acelerar de sua respiração e o aumento das batidas do seu coração. De repente, seus movimentos voltam e outro raio abrilhanta o céu. Acabou. Patrick se sentia livre, mas ao olhar para helena, seu coração se desmanchara, sua alma sofria.

- Oh meu Deus... – disse ajoelhando-se ao corpo da moça, que ainda estava quente – Helena... Por que você não me matou... Porque você fez tudo isso com a gente? Por quê? – chorava Patrick em meio aos seus confusos pensamentos.

O silêncio da mata foi sendo tomado pelos barulhos das criaturas da noite. Patrick continuou a chorar, inconsolável, mas tinha que tomar uma decisão. Pegou o corpo da jovem em seus braços, foi até a beira do precipício e o jogou de lá.

O corpo de Helena caiu de braços abertos, tingindo a água de vermelho e sendo carregado pela correnteza.


(***)

De volta ao carro, Patrick continuou em estado de choque. Curvou sua cabeça sobre o volante e chorou, tentando entender o que não podia ser entendido. Tentou ligar o carro, mas não funcionou. Tentou uma, tentou duas, tentou três. 

De dentro do casebre saiu o que parecia ser uma folha de papel. Ela veio voando com o vento e grudou no vidro da frente do carro. Era ela, Czestochowska com o menino. Patrick olhava para a imagem e parecia receber o mesmo olhar, a mesma angústia parecia estar nos olhos dela. Ele saiu do carro e  arrancou a imagem, jogando-a na poltrona da frente.

Pegou a estrada de volta, descendo lentamente a estrada pedregosa da encosta da montanha. O sol estava nascendo e ele pôde vislumbrar o amanhecer mais que já vira. As nuvens tempestuosas pareciam nunca ter existido e um lindo céu azul surgia com o nascer do sol. 




Patrick olhou para o banco lateral e a imagem havia desaparecido. O que estava acontecendo? De repente, a imagem bateu no vidro do carro, fazendo Patrick perder o controle e despencar na encosta da montanha. O carro rodopiou batendo nas árvores até que caiu de cima de um penhasco.

- AAHHHH!!!! – gritou Patrick ao ponto em que o carro colidiu com as águas gélidas, o que o deixou semi-inconsciente.

Quando deu por si, Patrick estava mergulhado nas águas do Lago Estero. O desespero tomou de conta do seu corpo quando tentou soltar seu cinto de segurança travado. O rapaz tentou diversas vezes, mas o cinto não cedia e ele começou a ficar sem ar. Um barulho estranho veio da parte de trás do carro. Ele olhou lentamente e viu a imagem de Czestochowska flutuando dentro do carro. 

A imagem percorreu lentamente a lateral do veículo, sendo acompanhada pela visão de Patrick, que soltou um grito de pavor quando viu o corpo de Helena estagnado na frente do pára-brisa de seu carro submerso.

O corpo da pobre moça estava pálido e com fraturas expostas, nada que lembrasse a formosura de sua silhueta. Os olhos de Patrick se entristeceram novamente. Seu cinto soltou bruscamente, libertando seu corpo aflito. O cadáver de Helena ficou estático, fazendo sua visão anterior ser perfeita. Patrick se aproximou do pára-brisa e, para seu terror, contemplou o despertar brusco de Helena, que se começou a se retorcer e soltar um líquido negro pela boca. O cadáver abriu os olhos, que haviam deixado seu azul doce por um negro que transmitia pura vingança.

Patrick tentou escapar pelo vidro traseiro, que estava quebrado, quando Helena quebrou o pára-brisa e avançou pra pegá-lo.  A moça possuída agarra sua perna antes que saia e o arrasta de volta para dentro do carro. Patrick chuta com toda a força que ainda lhe resta a cara de Helena, vendo e ouvindo perfeitamente seu pescoço sendo quebrado. Ele escapa e quando pensa que não vai conseguir, chega à superfície. Nada o mais rápido que pode, mas não há margem baixa, ele está cercado pelas montanhas. 

Uma mão de dedos retorcidos surge a poucos metros do rapaz. O desespero toma conta do mesmo e ele nada o mais rápido que pode, chega à encosta e começa a escalar a montanha, com a pouca força que lhe resta. Para sua surpresa, a besta em forma de Helena sai da água e começa a subir a montanha atrás dele, mesmo com o pescoço quebrado.  Ela o fixa com os olhos negros, suas pernas estão com fraturas expostas, como pode? A possuída sobe a encosta de seu modo diabolicamente bizarro, cravando suas unhas nas rochas, só com auxilio de uma das pernas. Ela agarra a perna do pobre moço e morde fortemente, arrancando um pedaço da sua panturrilha. Patrick grita de dor e não agüenta, caindo na água e tingindo a região com seu sangue vermelho. O pobre rapaz grita de dor, tentando nadar. Olha desesperado pros lados, mas a besta em forma de mulher desapareceu.

- AHH MEU DEUS!!! Meu Deus. Alguém... ALGUÉM ME AJUDE!!! – gritava Patrick, ouvindo apenas sua própria voz ecoando.

Ele tenta nadar novamente, mas a Helena possuída agarra-o por baixo e o arrasta de volta pra dentro do carro, deixando um caminho de sangue na água.

Milhares de borbulhas saem de dentro do capô submerso, borbulhas de tortura, borbulhas de dor, borbulhas de vermelhas gotas de sangue que levavam consigo gritos de uma dor descomunal. Uma dor eterna que terminou agora. Uma dor que se estenderá por toda a eternidade. Uma dor fruto de um desejo insano, de alguém que quis ter algo que não podia, ou pelo menos de alguém que não quis pagar o preço.

E ali, vendo o corpo de Patrick ser estraçalhado, estava Czestochowska com o menino, observando tudo, com seu olhar doce e sereno.





   
            

terça-feira, 3 de março de 2015

O MISTÉRIO DO CHUPACABRAS - PARTE II


“Satanás também opera por meio dos elementos a fim de recolher sua colheita de almas desprevenidas. Estudou os segredos dos laboratórios da Natureza, e emprega todo o seu poder para dirigir os elementos tanto quanto o permite Deus…. Mesmo agora está ele em atividade. Nos acidentes e calamidades no mar e em terra, nos grandes incêndios, nos violentos furacões e terríveis saraivadas, nas tempestades, inundações, ciclones, ressacas e terremotos, em toda parte e sob milhares de formas, Satanás está exercendo o seu poder. Destrói a seara que está a amadurar, e seguem-se fome, angústia. Comunica ao ar infecção mortal, e milhares perecem pela pestilência. Estas visitações devem tornar-se mais e mais freqüentes e desastrosas. A destruição será tanto sobre o homem como sobre os animais.” – O Grande Conflito, págs. 589 e 590.
۞۞۞
Acordei no meio da noite sobressaltado. Tive um brusca sensação de que estava caindo da rede e me assustei. Já aconteceu com você? A luz da lamparina na sala iluminava o teto de palha. Me virei de bruços e olhei pra rede de Pedrinho. A sensação térmica estava baixa, estranha. Eu estava com frio. Não aquele frio que você se cobre com dois ou três lençóis e passa, mas um frio por baixo da pele, que faz você se arrepiar várias vezes seguidas. Você já sentiu isso?
Me virava de um lado pro outro procurando uma maneira de voltar a dormir. Os acontecimentos de horas atrás ainda permeavam minha mente, provocando uma inquietação sobrenatural. Se eu contasse ninguém iria acreditar. E ainda houve a conversa com Pedrinho que me deixou mais nervoso ainda.
“Ele está nos observando agora!”. Se tudo que eu acreditava que fosse lenda fosse realidade, então estaríamos vivendo num mundo perigoso demais. E se eles fossem alienígenas tentando dominar a Terra? E se for obra de Satanás para maltratar a raça humana? Onde estaria Deus então? Seria, o Chupacabra de outra dimensão? Ahh não! Minha cabeça estava a mil. Não sabia mais o que pensar.
De repente comecei a ouvir sussurros vindos da rede de Pedrinho. Sussurros que, ao apurar a audição, percebi que era uma conversa.
- Não – sussurrava ele – Eles não são más pessoas.
Entre  uma frase e outra ele parava, como se estivesse ouvindo outra pessoa falar e em seguida continuava.
- Por que vocês não vão embora?
- Eu não quero ir com vocês, meu pais não vão deixar.
- Não… ele tem muito medo. Ele não acreditou no que você me disse.
- Sangue? Eu não gosto de ver sangue.
- Por que você não nos deixa em paz ?
Eu me levantei devagar. A corda rangeu na madeira a que estava atrelada, fazendo um som incomodante. Sob a pouca luz que vinha da sala, levantei e calcei meus chinelos, indo em direção à rede de Pedrinho. Comecei a chamá-lo, baixinho e a tocá-lo sacudindo de leve.
- Você não pode me levar. Meus pais vão ficar tristes – sussurrava.
Eu fiquei aflito porque agora sua voz estava tensa. Sacudi ele mais forte e disse :
- Acorda!!!
Instantaneamente senti um vento passar por  mim em direção a porta. Meu coração disparou. Havia alguma coisa conosco. Tirando coragem de não sei onde, caminhei em direção à cortina que servia como porta do quarto. De súbito a cortina levantou e ficou balançando como se alguém tivesse passado correndo por ela. Nervoso, me encostei na parede de barro, ofegante, fechei os olhos e respirei fundo. Continuei.
Bem lentamente levantei a cortina e com apenas uma parte do olho descoberta olhei para a sala. Parecia normal. Não havia barulho nenhum, nem mesmo dos grilos que todas as noites cantavam. Caminhei sorrateiro até a porta, feita de talos de côco secos e olhei, por entre as brechas, para fora. Estava tudo turvo, a iluminação que via eram os vaga-lumes rodopiando no ar. Me virei para voltar ao meu quarto mas fui surpreendido por um vento forte, um sopro que passou por mim e apagou a lamparina.
Minha respiração ficou ofegante.
- Santo Deus, murmurei baixinho.
Não queria assustar meus pais.
E do canto da mesa, na escuridão que se formou eu vi abrirem-se os olhos, aqueles olhos que tanto me apavoravam. Eles se ergueram até minha altura e vieram em minha direção. Tentei me afastar mas tropecei na cadeira e caí no chão. Os olhos vinham ao meu encontro e eu gritei:
- PAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAII!
Num pestanejar eles já não estava lá. Meu pai e minha mãe apareceram apavorados. Pedrinho também levantou cambaleando,sem entender. Minha mãe estava com uma lanterna na mão e correu para acender a lamparina.
Ao me ver, ficaram ainda mais assustados.
- Pelo amor de Deus, neném, o que aconteceu? – preocupou-se minha mãe.
- Você está suado meu filho – disse meu pai levantando-me do chão de terra batida e passando a mão na minha testa.
- O Chupacabra estava aqui, pai. Ele quer me levar!
Num gesto de carinho, Pedrinho me abraçou pela cintura. Eu retribui a demonstração de afeto.
- Filho, acalme-se. Você deve ter tido uma crise de sonambulismo, daquelas que de vez em quando você tem.
- Vocês não entendem, disse eu chorando. Essa coisas que acontecem são ele!!! Os arrepios na espinha, a sensação de queda que você tem às vezes, o sonambulismo, o frio… é ele me chamando!!!
Minha mãe apenas me abraçou e disse que ia passar.
- Quando anoitecer de novo vamos acabar com isso, filho, eu prometo  – disse meu pai.
Voltei pra rede e me deitei olhando para o teto. Ao longe ouvia meus pais falando baixo. Comecei a chorar, mas não disse mais nada.
- Lucas – disse Pedro, falando baixinho.
- Oi Pedrinho – respondi tentando esconder o choro.
- As vezes eles tiram sangue de nós enquanto estamos dormindo.
- O quê ? – me surpreendi.
- Eles me falaram que esses sinais que a gente tem na pele, esses pretinhos,  são as marcas de que eles tiraram nosso sangue. Mas eles nunca beberam. A quantidade de sinais que você tem, significa a quantidade de vezes que eles tiraram de você enquanto você dormia, com agulhas muito finas.
- Vai dormir, pequeno, disse o mais suave que pude, mesmo estando mortificado – Você vai ficar bem, eu prometo.
۞۞۞
Convenci meu pai a me levar com ele à caçada, mesmo que fosse apenas para segurar a lanterna. Eu não podia ficar parado. Eu tinha perguntas que precisavam ser respondidas, lacunas que deveriam ser preenchidas. Além do mais eu não me aguentaria de ansiedade.
- Eu também quero ir.
- Não Pedrinho – negativei – Você não pode ir.
Me abaixei para falar com ele.
- Se tudo que você me falou for verdade, você está mais seguro aqui, entendeu?
Ele afirmou balançando a cabeça. Não sei porque eu gostava tanto do Pedrinho. Talvez porque não tivesse irmãos. Mas enfim, havia chegado o momento.
Despedimo-nos da minha mãe, que começou a chorar e pedir pra o Senhor nos abençoar contra os laços de Satanás. Subimos em direção ao campinho onde estavam os outros, ajeitando as cabras. Marquinho, filho do Seu Joaquim, dois anos mais velho que eu, começou a “tocar” as cabras para a vereda que dava acesso ao pasto do terreno rochoso, ao norte, às margens do rio. Pra quem não sabe, “tocar” animais em grupo aqui significa “guiar”.
Os animais foram na frente e nós atrás. Eu estava acompanhando Marquinhos e nossos pais logo em seguida.
- O que você acha de tudo isso Marquinho? – perguntei.
- Esse bicho não vai tanger a gente daqui. Eu não vou permitir isso – respondeu ele, sério.
Marquinho sempre viveu em interiores. Por isso tinha pouco conhecimento, mas muita coragem. Desde que eu o conheci que sei que ele sempre trabalhou na lavoura, saia pra caçar sozinho, cuidava dos animais, enfim.
Chegamos no local. Era uma colina com rochas enormes espalhadas pela sua extensão.  No final havia uma ribanceira que dava para uma queda de mais de 6 metros rio a dentro. O pasto era mesclado, na parte de baixo havia uma grama verde e na parte de cima uma matapasto de Unha-de-Gato (sabiá), uma planta de muitos espinhos no caule. Um local belíssimo.
O sol estava se escondendo detrás das colinas no horizonte. O céu estava ficando menos azul  e mais alaranjado a oeste. As primeiras estrelas começavam a surgir e a lua começou a brilhar com mais intensidade à medida que o sol se punha. Vendo aquele momento singular, eu senti um pouco de paz. Minha convicção só aumentou naquele lugar. Tínhamos que defendê-lo a qualquer custo.
۞۞۞
Olhei no meu relógio: 23:00 horas. Estávamos a horas escondidos atrás das rochas. Só a floresta densa nos cercava. As cabras mal berravam, ouvíamos apenas os sinos. Ao longe ouvíamos algumas pancadas na água, como rebanadas. Meu pai disse que era um dos grandes surubins que habitam o rio e só saem a noite para comer peixes menores e algum desavisado que ousar nadar no rio. A esta altura eu não duvidava mais de nada.
Meus pensamentos foram interrompidos pelo aumento dos berros das cabras. Elas estavam alvoroçadas. Eles deviam estar por perto.
- Apague a lanterna, Lucas, deixe apenas a luz da lua.
Meu coração acelerou. Um barulho como de sonar começou a ecoar dentro da floresta. Ele zoava em sequencia.  Semelhante àqueles radares que localizam coisas no espaço ou no mar. O barulho aumentou. Estavam perto, vindo do leste, pelo lado alto. Pude observar uma luz se aproximando, intensa.
Eis que ele surge de dentro da floresta. Meus olhos arderam enquanto todo o local iluminava-se de uma luz sobrenatural. Era uma bola de luz fluorescente em forma de círculo que flutuava a mais ou menos meio metro do chão. Coloquei meu óculos escuros, assim como todos, e pudemos vislumbrar com pavor, escondidos, aquela cena que se contássemos ninguém acreditaria.
A coisa flutuante parou bem próximo dos animais, emitindo ondas de luz que faziam o capim e as plantas balançarem em sequencia, como se fossem ondas. As cabras estavam saltando umas sobre as outras. Meu pai fez um sinal com as mãos, indicando para prosseguirem para mais próximo do inimigo, sempre se escondendo através das rochas. Ele correu agachado de uma pedra para outra, seguido por mim. Chegamos bem próximos.
A luz emitida ficou um pouco mais fraca. Um barulho estridente veio da nave em forma de globo de mais ou menos 3 metros de diâmetro. Uma brecha se abriu liberando uma fumaça azulada, seguida por um abrir de porta, que desceu lentamente tocando o chão. Meu coração batia desenfreadamente, não estava mais acreditando no que era real. Meu pai estava de olhos arregalados, mas manteve-se firme em suas atitudes.
Vi quando um braço curto e cabeludo foi posto para fora, segurando a borda da entrada da nave com suas mãos longas e afiadas de apenas três dedos. Logo em seguida, a criatura colocou a cabeça para fora, cheirando o ar. Os grandes olhos amarelos estavam lá. O ser não tinha nariz para fora, mas orifícios minúsculos e nenhuma boca. Seu queixo era afilado contrastando com a cabeça em forma de cuia.
O chupacabra estava lá! Ele era real! Eu vi!
Ele desceu da nave e eu percebi que suas pernas eram grossas como a de um tiranossauro e muito ressecadas. O corpo era coberto de pêlos prateados que ficam brilhando de segundo em segundo, como um pisca-pisca de natal, só que com menos intensidade. Em sua costas, haviam uma sequencia de espinhos grandes, grossos e pontiagudos que parecia sair da sua coluna, eles terminavam na região fecal, de onde saía uma imensa calda, que se mexia como serpente. Na ponta da cauda havia… havia um orifício que abria e fechava. Havia presas lá!!! Haviam dentes pontiagudos. Que horror!!  A boca na cauda soltava sons estridentes que me deixaram tonto.
O chupacabra caminhou  até o curral, baixou um pouco a cabeça para sentir o cheiro dos animais. Em seguida, sua cauda-boca se aproximou de um animal, abriu-se, dando realce às enormes presas, que abocanharam o pescoço dele fazendo-o berrar de desespero. A calda levantou a cabra como papel, jogou no chão com muita força, enquanto ela se debatia e, aos poucos morria. A barriga da cabra começou a inchar, inchar… até que explodiu, exibindo suas tripas.
Todos ficamos horrorizados. Meu pai acenou para os outros se acalmarem. Levantou-se sorrateiramente e mirou na besta. Estragando tudo, Marquinho saiu correndo de detrás da rocha.
- Desgraçado!AAHHH!!! – gritou, dando um tiro que acertou a cabeça da criatura, arrebentando a parte direita.
O Chupacabra caiu se esperneando de dor enquanto de sua cabeça escorria um líquido azul espesso, brilhante como neon. A calda soltou gritos altíssimos, que fizeram todos tamparem os ouvidos, parando em seguida, imóvel. Em seguida, Marquinho foi até a criatura e olhou nos olhos dele.
- Era isso que você queria, besta-fera!!!
- Acalme-se Marcos! – bradou meu pai.
Marcos não se conteve e começou a chutar a cabeça da fera, que não se movia mais. Seu Joaquim o segurou e arrastou para longe. Havia acabado, simples assim? Não.
Começamos a ouvir ecos de sonares por todos os lados. Não era possível!!!
- Corram para seus postos!! Agora!!! – gritou meu pai.
Eu não estava acreditando. Assim que nos escondemos, mais três naves saíram da floresta. Elas rodearam todo o local. Uma parou em cima da pedra onde eu e meu pai nos escondíamos. Ouvi um barulho porta se abrindo. Vi através da sombra que se projetava em cima da pedra que outro Chupacabra desceu e ficou na beirada da rocha, derrubando pedras menores sobre mim.
Meu pai tapou minha boca com as mãos para que eu não gritasse. Estava suando, muito. Ouvimos gritos estridentes, os outros deveriam ter visto seu semelhante morto. O que estava sobre também gritou alto demais. A confusão no meu cérebro me fez deixar a lanterna cair e sair rolando ladeira abaixo.
- Corre. Agora. O mais rápido que você puder!!!
Outro urro estridente. Ele nos encontrou. Saí em disparada pela colina descendo o campo, peguei a lanterna e entrei na floresta. Ouvi tiros e mais tiros. Mas não olhei para trás. Cai diversas vezes nas ramas de batata selvagem até que não ouvi mais nada. Parei, ofegante, coloquei as mãos nos joelhos e tentei controlar a respiração. O que eu estava fazendo??? Eu não poderia abandonar todos ali. Eu tinha que voltar!!!
Um barulho na floresta me assustou. Eu apontei a lanterna mas não vi nada. De um lado para o outro. NADA. A luz da lanterna piscou, falhou.
- Não não não não não não!!!!
Bati ela na minha mão e ela acendeu repentinamente, iluminando a cara do meu pai, que quase me mata de susto.
- Papai!!!
- Filho, temos que sair daqui!!! Eles começaram a sugar o sangue de humanos!!!! – disse assustado.
- Mas pai… como, como ???
- Eles devem estar se vingando pelo que fizemos com aquele… ó Céus. Eles pegaram o Joaquim e o Chico. As tripas deles… vamos embora!
O eco dos sonares inundou nossos ouvidos. Uma luz se aproximava rapidamente.
- CORRE!!!
Disparamos em mais uma corrida pela sobrevivência. Corremos para leste, pra sair na estrada e voltar pra casa, mas uma nave estava vindo de lá.  Tentamos todos os lados mas eles estavam por todos eles. Nos escondemos dentro de uma moita e ficamos em silêncio. Duas delas pararam na nossa frente. Meu coração queria sair do peito de tão pulsante que estava.
Eu vi a calda deles estava de fora da nave, por um orifício próprio. Começaram a se afastar  para lado opostos mas uma cabra surpreendeu a mim e a meu pai entrando dentro do arbusto onde estávamos, berrando. As naves voltaram e apontaram uma espécie de laser pra dentro dos arbustos.
- Filho, eu vou atrasá-los!!! Corra!!
Eu corri o mais rápido que pude. Ouvi ainda alguns tiros e um grito. Minhas lágrimas não se contiveram e escorreram pela minha face, impedindo-me de ver melhor. Saí novamente no campo de onde tinha partido. Mas o quê ???
Não havia mais curral, não havia mais nave, não via mais nada.
- Lucas!!!
Era Marquinho. Ele veio ao meu encontro e disse que a gente tinha que fugir, que todos estavam mortos. Eu ainda não havia parado de chorar. Ele segurou na minha mãe e me puxou rumo a oeste, rumo ao rio.
Fomos surpreendidos por duas naves que apareceram repentinamente, impedindo-nos de prosseguir. Um som de laser saiu delas e uma rajada de luz intensa atravessou nossos corpos. Eu queria gritar, mas não conseguia. Sentia que meu corpo pesava mil quilos. Uma força gravitacional nos atraiu, cada um para uma nave, de onde saíram caldas enormes com uma boca assustadora na ponta. As lágrimas que desciam minha face demonstravam o pavor que estava sentindo.
Olhei para Marcos e vi quando a calda enrolou-se nele como uma anaconda se enrola na presa, apertando-o fortemente. Ele, ao contrário de mim, conseguiu externar sua dor com gritos. Ouvi seus ossos quebrando no abraço mortal que o Chupacabra dava, até o ponto em que seu pescoço foi abocanhado pelo tentáculo. As presas da besta se fincaram entre a clavícula e a artéria principal do pescoço, fazendo descer um fino filete de sangue.
A pele de Marquinho começou a clarear. Eu observei apavorado quando, lentamente, o sangue esvaía-se do seu corpo, fazendo secar e ficar com aparência esquelética. Em seguida, sua barriga começou a inchar até o ponto de explodir, deixando dependuradas suas tripas, mas nenhum sangue saiu do corpo.
Era aquele meu destino?
A calda enrolou-se em mim e começou a me apertar. Ò céus, que dor!!! Eu não queria morrer daquela maneira, mas estava imobilizado. Vi de perto a morte quando olhei para a boca horrenda abrir-se para cravar as presas em meu pescoço. De súbito, meu pai saiu do nada, puxou seu facão e cortou a cauda do monstro. Foi como despertar de um pesadelo o modo como me libertei. O impacto da queda me fez sair do torpor em que me encontrava. Meu pai começou a atacar a nave a golpes de facão enquanto gritava para eu fugir.
O chupacabra da outra nave agarrou meu pai pelo pescoço. Eu não pude ver, saí correndo  ladeira abaixo.
Uma outra nave saiu da floresta e começou a me perseguir. Eu corri mais rápido ainda em direção ao rio. O som do sonar estava  próximo. Cheguei na ribanceira  de mais de 6 metros e não pensei em mais nada, só me joguei dentro do rio e desapareci nas suas profundezas.
Senti a água me levar. Abri meus olhos ainda submerso e vi uma luz sobre mim, no lado de fora. Alguns segundos depois arrisquei e subi à superfície, podendo ainda ver a bola de luz voltar flutuando pelo rio. Vi meu pai sendo sugado ao longe. Um esturro dentro da água me fez voltar a mim. Seria o Surubim? Não liguei. Tomei ar nos pulmões e deixei as águas do rio me levarem.
۞۞۞
Nadei até a praia fluvial que encontrei. Deitei-me na areia, olhando pra lua, tentando assimilar tudo o que aconteceu. Não havia explicação. Lágrimas de dor saíram dos meus olhos. Meu pai. Meus amigos. Nós… nós devíamos ter ido embora…
Olhei para o local…
- Espera! Essa é praia onde tomamos banho sempre. Estou perto de casa!
Barulhos de sonares passaram ao longe. Eu me enterrei ainda mais no chão. Eles passaram por entre as árvores mais velozes do que nunca e subiram a ladeira.
- A ladeira!!! Eles estão indo pro povoado!!! Não!!!
Corri desesperadamente para alertar a todos. Subi correndo de modo desenfreado. De longe vi uma cena que seria magnífica se não fosse apavorante no momento. As naves estavam sobre as casas, uns três metros acima. Quatro delas! Estavam lançado um raio de luz sobre elas e… meu Deus… Eram corpos!!! Eles estavam abduzindo pessoas.
Me aproximei mais e vi o corpo de dona Teresa todo sugado.
- Merda!!! Eles vieram buscar as crianças!!! Pedrinho!!!
Corri para casa e pude ver Pedrinho sendo levantado pelos ares. Ele olhou para mim e estendeu as mãos, assustado. Eu subi na pitombeira que tinha do lado da minha casa, no mais alto galho.
- Você não vai levar o meu primo!!!
E saltei sobre Pedrinho para juntos caímos no telhado de palha.
Não aconteceu.
Eu o agarrei com todas as forças mas fiquei pendurado no ar, junto com ele. Senti uma gota de lágrima que caiu do seus olhos na minha face. Ele estava assustado.
Uma calda assassina desceu. Uma janela como de para-brisa de carro abriu na nave e vi meu inimigo mortal de olhos amarelos. Ele entortava a cabeça de um lado para outro como que querendo entender o que estava acontecendo. A boca tenebrosa da calda mordeu meu braço direito. Eu comecei a gritar.
- AHHHH…. Você não vai levá-lo seu desgraçado!!!
Senti uma pontada mais forte no meu sangue. A cauda se soltou do braço e mordeu meu pescoço. A dor era quase insuportável, mas eu não pudia desistir do meu primo. Não do meu irmãozinho.
Minha visão ficou turva. Não tinha mais forças para segurar e caí. Caí sobre o teto de palha e desci escorregando até o chão coberto de areia. Senti o gosto do meu sangue saindo pela minha boca. A luz cessou, eles dispararam um laser sobre as casas que queimaram rapidamente.
As naves se juntaram no centro do vilarejo, rodando em círculos. Estendi a mão  como se pudesse alcançar meu priminho. Olhei para o lado e lá estava minha mãe, ao lado de um quibane de arroz.
A dor estraçalhando meu peito.
As naves subiram ao céu e entraram em uma nave mil vezes maior que estava invisível e por alguns milésimos de segundo apareceu.
Apaguei.
Acordei sonolento pelo barulho de helicópteros aterrizando.
- O que vamos fazer Senhor ? – dizia um.
- Temos que limpar o local e não deixar vestígios.
- O FBI vai tomar conta disso.
- Senhor temos um sobrevivente!!!
Apaguei novamente.
۞۞۞
Não sei porque os Chupacabras não acabaram comigo, não me levaram. Mas alguma coisa me diz que logo logo eles me darão uma resposta.
Acordei num hospital milhões de quilômetros longe de casa. O FBI me mantem sob seus cuidados para que eu não conte nada a ninguém.
Mas eu estou contando pra você.
Acredite.
Eles não são aqueles cachorrinhos feios que você viu nos casos da TV.
Eles não atacavam humanos até que um de nós matasse um deles.
Eles querem algo conosco, com você.
Eles estão por aí, perto de você.
Observe os sinais e você poderá vê-los. Mas não vencê-los.
Acredite em mim.
Acredite.
Pois há mais coisas entre o céu e Terra do que supõe a nossa van filosofia.